
Os inesperados resultados das eleições PASO (Primárias Abertas Simultâneas Obrigatórias), que servem como um barómetro popular à ação governativa, desencadearam uma crise política na Argentina com vários ministros e titulares de órgãos estatais a renunciarem aos respetivos cargos, forçando o presidente Alberto Fernández a reorganizar o executivo.
A derrota do oficialismo foi interpretada como um claro voto de protesto, nomeadamente à gestão da pandemia e a escândalos como o Olivosgate - uma festa de aniversário para a Primeira Dama que contou com dezenas de convidados presenciais, em plena quarentena nacional – ou o caso do vacunatorio VIP, em que personalidades próximas do governo tiveram prioridade no acesso à vacina contra a covid-19 e que levou à queda do ministro da Saúde. Os resultados refletem ainda o agravamento dos problemas económicos, que já vinham a deteriorar-se desde 2019, com o índice de pobreza a situar-se agora em 40.6% da população, com a inflação a aproximar-se do mesmo valor anual e o desemprego a rondar os 10%.
A coligação opositora, de centro-direita, Juntos por el Cambio conseguiu inesperadas vitórias em zonas tradicionalmente peronistas como o distrito de Buenos Aires, Chaco, La Pampa e até Santa Cruz, o berço do kirchnerismo. Esta vitória consolidou a posição de Horacio Rodríguez Larreta como possível futuro líder da oposição, tendo tido um papel ativo na escolha dos candidatos apresentados pelo seu movimento. Larreta aproveitou também o ímpeto das PASO para aumentar o seu perfil internacional, partindo para uma série de reuniões em Washington e Nova Iorque, na sua condição de chefe do governo da Cidade Autónoma de Buenos Aires (CABA). Encontrou-se com várias figuras políticas e empresas como John Kerry ou o vice-presidente da divisão latino-americana do Banco Mundial, Carlos Felipe Jaramillo. Teve também encontros com o CEO da NYC & Company, uma empresa especializada na promoção turística, e uma visita ao Council of the Americas onde se reuniu com a CEO Susan Seagal e vários empresários e investidores do setor financeiro. Apesar de todas estas atividades estarem ligadas à governação de Buenos Aires, incluindo o anúncio de que a C40 World Mayors Summit de 2022 terá lugar na capital argentina, servem também o propósito de projetá-lo como presidenciável em 2023.
A coligação do governo, Frente de Todos, apenas conquistou sete dos vinte e quatro distritos em jogo, um duro volte-face levando em consideração que em novembro o país vai a votos para renovar metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado . Atualmente a coligação no poder tem uma força considerável em ambas as câmaras, mas não uma maioria, com 120 deputados num total de 257 na Câmara e 41 dos 72 senadores.
Os resultados tornaram visíveis as tensões entre as diferentes alas peronistas e levaram a uma curta mas intensa crise que originou várias mudanças na constituição do governo.
Na noite de domingo o presidente assumiu a responsabilidade e prometeu trabalhar para mudar os resultados até às eleições legislativas. Contudo segunda-feira a vice-presidente Kirchner reuniu-se com o seu filho Máximo e com Eduardo de Pedro, ministro do Interior, e discutiu o curso de ação a tomar para evitar semelhante resultado nas legislativas, sendo o principal ponto a mudança de ministros, em particular do chefe do gabinete Santiago Cafiero e do ministro da Economia Martín Guzmán.
Dois dias depois deste encontro surgiu uma onda de resignações liderada por de Pedro, juntando-se a ele vários ministros e titulares de outros órgãos estatais, todos eles da ala kirchnerista, como os ministros da Justiça, do Desenvolvimento Territorial, da Ciência, do Médio Ambiente e da Cultura juntamente com as diretoras dos serviços de saúde dos reformados (PAMI) e da segurança social (ANSA), entre outros.
A reação do Presidente surgiu através do Twitter, quando Fernández assegurou que a gestão da nação seria feita como ele achasse melhor, ao que Cristina Kirchner respondeu publicando uma carta em que defendia a necessidade de escutar o povo argentino, ao mesmo tempo que relembrava que tinha sido ela a escolher Fernández para presidente. No mesmo texto, Kirchner recusava ter tido qualquer papel nos pedidos de renúncias.
Na sexta-feira Fernández teve uma série de reuniões na Casa Rosada, das quais resultaram mudanças profundas no executivo. O chefe do Gabinete Santiago Cafiero, homem da máxima confiança do presidente, passou para as Relações Exteriores, sendo substituído pelo governador de Tucumán, Juan Manzur, indicado expressamente por Kirchner na sua carta. Eduardo de Pedro manteve-se como ministro do Interior juntando-se a ele outras figuras próximas da vice-presidente como Anibal Fernández na pasta da Segurança, Julián Dominguez na Agricultura e Daniel Filmus na Ciência.
Além disso, o porta-voz do presidente, Juan Bondi, entregou a sua renúncia ao cargo depois de ser acusado por Kirchner de estar por detrás das acusações de que seria ela a estratega que teria ordenado a onda de resignações que originou esta crise institucional.
Apesar das tensões internas houve sinais de apaziguamento de parte a parte. Kirchner ligou ao ministro da Economia, Martín Guzman, para negar que desejava vê-lo fora do governo e Fernández cancelou manifestações de apoio à sua atuação.
Agora com um governo maioritariamente composto por fiéis à vice-presidente, é expectável que a política económica aposte em aumentar os apoios sociais e colocar mais dinheiro nos bolsos dos argentinos. As medidas já tomadas envolveram uma subida do salário mínimo e um aumento do piso salarial do impuesto de las ganancias, ajustando a taxação aos valores atuais de inflação vividos no país.
O governo espera assim alterar os sinais dados pelas PASO e conseguir manter a maioria que o partido tem na Câmara e no Senado.
Texto: Manuel Raposo
Edição: Filipe Domingues, Gastón Ocampo
Fotografia: Casa Rosada. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B570zDTBy27/
Fontes
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