
No fim de semana de 14 e 15 de maio decorreu uma das eleições mais importantes história moderna do Chile, de onde pode nascer uma nova Constituição. Para além de elegerem os próximos governadores, perfeitos e vereadores, o povo chileno elegeu a Convenção Constituinte que terá a tarefa de alterar a moldura constitucional do país. A atual constituição, presente desde 1980, foi herdada da ditadura Pinochet e conta já com 50 reformas. O objetivo é que a nova constituição seja submetida a plebiscito em 2022. Para além disso, em novembro deste ano espera-se ainda as eleições para a renovação do Congresso e da Presidência. 2021 é, portanto, um ano histórico para o sistema político chileno.
A proposta da alteração da Constituição surge no contexto das manifestações sociais que marcaram o ano de 2019. As manifestações de 2019 foram motivadas pelos aumentos do preço do bilhete de metro em Santiago, o que levou milhões de pessoas à rua por todo o país e à escalada da violência. No entanto, por detrás da causa precipitante destes protestos está todo o contexto social e político a que a população demonstrava crescente descontentamento – a classe média debate-se com o aumento do custo de vida e a descida dos salários, ao mesmo tempo que uma onda de escândalos de corrupção e evasão fiscal minam a confiança da população nas elites políticas e empresárias. Assim, a Constituição surge, para muitos, como única via para canalizar institucionalmente as exigências sociais da população. O plebiscito sobre a nova Constituição estava marcado para abril de 2020, tendo tido de ser adiado para outubro do mesmo ano devido às condições da pandemia, recebendo o voto positivo da população.
A Convenção Constituinte será marcada pela diversidade partidária, ideológica, étnica, de género e pela redução da influência dos partidos políticos tradicionais. A Convenção contará com 155 assentos, esperando-se uma distribuição equilibrada de homens e mulheres e contando com 17 assentos reservados para a população originária do país, na esperança de que os problemas na relação entre o governo chileno e o povo Mapuche sejam atenuados. Para além disso, é de notar a relevância que os independentes obtiveram nesta eleição, ao eleger cerca de 30 dos 155 assentos na convenção. Pelo contrário, alguns partidos sofreram um golpe considerável nas eleições, especialmente a direita associada ao presidente Sebastián Piñera, que não conseguiu eleger um terço do plenário (o necessário para conseguirem negociar as normas da Constituição), mesmo em coligação com o Partido Republicano, elegendo apenas 39 assentos. No total, cerca de 70% da Convenção é composta pelos partidos de esquerda ou esquerdistas independentes, e pela população indígena.
No entanto, há que ter em consideração que a mudança constitucional ocorre num período em que o país enfrenta a crise sanitária provocada pelo Covid-19. Devido ás circunstâncias, a participação dos eleitores foi de apenas 40%, o que representa uma abstenção bastante elevada. A reduzida participação dos eleitores preocupa os especialistas que consideram que o ideal seria contar com pelo menos 51% dos eleitores, distribuídos geograficamente pelo país. O voto deixou de ser obrigatório no país em 2012, e com isso, a participação eleitoral diminuiu consideravelmente – em 1989 a participação era de cerca 87%, passando para 36% em 2016. A situação é agravada pelo facto de a participação ser mais reduzida em áreas geográficas tendencionalmente mais pobres, por exemplo, em La Pintana, uma das zonas menos favorecidas da capital, a participação foi de apenas 13,69%, mas em Vitacura, uma das zonas com maior poder aquisitivo, chegou aos 41,31%. Estas situações colocam questões sobre a legitimidade da nova Constituição e sobre a nova base do pacto social do país.
De facto, a abstenção de voto põe em causa a resolução do ponto fundamental que se pensa estar em torno desta mudança – a desigualdade. A América Latina é um dos continentes que apresenta maior índice de Gini, no entanto, o Chile parece ser um dos países mais estáveis e prósperos da região. Juntamente com o Uruguai e o Paraguai, o Chile tem apresentado um considerável crescimento económico e investimento estrangeiro que por sua vez contribuiu para a diminuição da pobreza e à expansão da classe média. No entanto, é verdade que esta tendência pode vir a ser alterada pelas circunstâncias da pandemia, apesar do governo estar a lidar ativamente com a crise e ter criado um plano alargado de vacinação.
Com isto, há quem questione se a verdadeira questão por detrás de uma nova Constituição é a da desigualdade. Será que corremos o risco de estar a eliminar a moldura constitucional do país mais estável da América Latina? Para além de que, com a ocorrência desta mudança no país, é expectável que outros países no continente sigam o seu exemplo. Arrastados pela situação pandémica que promete fomentar tensões sociais, as reivindicações por mudanças constitucionais noutros países, como na Colômbia, onde ocorrem grandes mobilizações sociais, pode ser o rastilho incendiário para a instabilidade.
Espera-se então que a Convenção discuta o regime político e o sistema de governo, pondo possivelmente em causa o sistema presidencialista, os princípios dos povos originários, o desenvolvimento económico e o destino de instituições, como o Tribunal Constitucional. As mudanças constitucionais no Chile, para uns, podem representar uma oportunidade ao poderem criar um sistema que vá de encontro com desejos de maior igualdade, enquanto que para outros, pode também representar um passo atrás em relação á posição privilegiada que o país tem no continente nesse aspeto. Num momento em que Portugal (no âmbito da UE) reforça a ligação e o intercâmbio de informação com a América Latina, o país deve manter uma posição atenta e cooperativa em relação à manutenção da estabilidade na região, mantendo um diálogo aberto e multilateral com os seus aliados da comunidade ibero-americana.
Jéssica Flores
Fotografia: El País. Disponível em: https://elpais.com/internacional/2021-05-15/chile-inicia-un-cambio-de-era-con-la-eleccion-de-los-redactores-de-una-nueva-constitucion.html
Fontes
- Bosco, Juan. “Boletín n.º18”. El Americanista, 29 de Maio de 2021. https://elamericanista.com/narcoterroristas-masacran-peru-recondito-para-frenar-castillo-cerron/
- Montes, Rócio. “Chilenos castigam partidos políticos na eleição de parlamentares que decidirão nova Constituição”. El País, 17 de Maio de 2021. https://brasil.elpais.com/internacional/2021-05-17/chilenos-castigam-partidos-politicos-na-eleicao-para-a-constituinte.html
- N.a. “Chile inicia el camino del cambio institucional”. Embajada Abierta, 10 de Maio de 2021. https://www.embajadaabierta.org/post/chile-inicia-camino-cambio-institucional
- Taub, Amanda. “‘Chile Woke Up’: Dictatorship’s Legacy of Inequality Triggers Mass Protests”. The New York Times, 3 de Novembro de 2019. https://www.nytimes.com/2019/11/03/world/americas/chile-protests.html