O conflito entre a Rússia e a Ucrânia possui poucas ligações diretas à América Latina e, por isso, poucas consequências diretas na região. A maior integração das economias latino-americanas com a China e os EUA contribui para amenizar esta situação (as exportações para a União Europeia representaram apenas 1,6% do PIB da região entre 2017-2021). Contudo, o impacto em vários setores vitais da economia como a alimentação, a energia e as commodities faz soar alarmes na América Latina.
Economicamente falando regista-se atualmente um crescimento médio na América Latina de 2,5% que, embora estando abaixo das previsões de 3,5%, consegue superar os crescimentos anuais de 2,5% registados entre 2015 e 2019.
É importante realçar que os valores podem variar de país para país por causa de fatores internos (note-se que o Brasil apenas prevê crescer 0,8%, de acordo com as últimas projeções do FMI) e que os valores médios globais podem sofrer alterações caso o conflito se prolongue no tempo e no espaço. No entanto, mesmo que o conflito afete ainda mais o continente europeu, não se espera que haja grandes impactos a nível económico, devido à pouca integração com o Velho Continente.

A América Latina tem vindo a registar pressões inflacionistas desde a reabertura das economias, com o fim das várias quarentenas e o restabelecimento das cadeias de fornecimento globais. O aumento do preço dos combustíveis e dos produtos alimentares logo a seguir ao começo do conflito deu início a uma espiral inflacionista global, aumentando os valores que já se registavam na América Latina. Com a subida generalizada dos preços, o consumo tende a retrair-se e as políticas monetárias tornam-se mais rígidas (provocando dificuldades nos investimentos), acabando por prejudicar a recuperação da economia latino-americana na era pós-COVID.
A inflação média anual na América Latina registava um valor de 7,3% em fevereiro - uma subida de 4,5% em comparação com o período nominal do ano passado. A subida no preço dos transportes e dos produtos alimentares (dois setores económicos responsáveis por 40%, em média, do consumer price index) é ainda mais acentuada em comparação com o período nominal- 13,1% e 11,7%, respetivamente.
O conflito provocou ruturas nas exportações de trigo e soja provenientes da Rússia e da Ucrânia, dois dos principais produtores destes produtos. Esta situação pode trazer benefícios para a América Latina, visto que alguns estados são grandes produtores de trigo, como é o caso da Argentina que, em 2020, registava 4,17% das exportações mundiais de trigo.

Como o gráfico demonstra, a percentagem de importadores europeus de trigo argentino é residual, o que demonstra as possibilidades de exportação.
Embora possa apresentar-se como um mercado alternativo para estes produtos, a América Latina deve ter em atenção duas questões importantes: por um lado, a longa duração do conflito pode levar a restrições das exportações; por outro, as preocupações com a segurança alimentar são cada vez maiores a nível global, particularmente na América.
O aumento dos preços dos combustíveis irá beneficiar igualmente as maiores companhias petrolíferas latino-americanas, como a mexicana PEMEX ou a brasileira Petrobras. Segundo a OEC, o México foi responsável por 8,18% das exportações mundiais de crude e o Brasil alcançou os 9,1%, no ano de 2020.
Embora os seus principais importadores sejam os EUA e a China, vários países europeus como Espanha, Portugal e Países Baixos adquiriram já alguns valores significativos de petróleo, e é expectável que o leque de consumidores aumente.
Prevê-se também bons valores para companhias mineiras e de metais. É, no entanto, no setor agrícola que se esperam os melhores resultados económicos da América Latina, com o milho, o trigo e a soja a ultrapassarem valores históricos.
Na produção de trigo e soja o destaque segue novamente para a Argentina e o Brasil, que ocupam o pódio dos exportadores mundiais, em conjunto com os EUA. A aquisição de fertilizantes (maioritariamente provenientes da Rússia, um dos maiores produtores mundiais) antes do início do conflito vai ajudar a manter a produção destes produtos agrícolas durante o ano de 2022.
Uma escassez contínua ou agravada de semicondutores desaceleraria o crescimento da produção de automóveis, com repercussões para fornecedores de automóveis no Brasil e no México e, em última análise, para produtores de aços planos e especiais.
Ao nível das infraestruturas, qualquer perturbação das cadeias de fornecimento resultará em atrasos na conclusão de projetos, embora várias companhias possuam auto produção de matérias-primas e pouca dependência da Rússia. A crise dos semi-condutores pode provocar um efeito de spill over neste setor.
A nível financeiro, as instituições financeiras latino-americanas possuem poucas ligações à Federação Russa. As várias sanções aplicadas desde o início do conflito à Rússia têm pouco efeito nos bancos latino-americanos. No entanto, as rígidas políticas monetárias mencionadas anteriormente resultarão em maiores custos de financiamento, sobretudo devido às saídas de capital.
Com o aumento dos preços de bens e produtos, o poder de compra dos cidadãos diminui e acaba por levar a uma redução de capacidade para lidar com a dívida, levando a um aumento das taxas de juro.
Em suma, o conflito no leste europeu pode revelar-se um problema ou uma oportunidade para a América Latina. Num mundo globalizado, qualquer choque no sistema internacional tem sempre repercussões à escala global. No entanto, como visto previamente, a América Latina tem poucas conexões diretas com os estados beligerantes, não sendo afetada diretamente como os países europeus. As dificuldades económicas que assolam a Europa atualmente também não causarão perturbações excessivas, visto que a integração da região é muito maior com potências como a China ou os EUA.
Com o seu mercado vasto e diversificado, as economias da América Latina têm agora uma excelente oportunidade de se afirmarem no plano internacional como um mercado alternativo aos atores tradicionais, assim como procurar uma maior integração com a Europa para suprir várias necessidades deste continente, principalmente nos setores das energias e dos produtos agrícolas.
Texto: Vasco Saturnino
Edição: Manuel Raposo
Fontes:
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