
Após a queda de três presidentes, num país reconhecido pela sua estabilidade política e económica, as eleições peruanas a 6 de junho foram consideradas decisivas para o futuro do país.
Na segunda volta das presidenciais, os cidadãos foram às urnas escolher entre Pedro Castillo, um professor e líder sindical de esquerda conhecido por encabeçar uma grande greve de professores em 2017 que mobilizou 238 mil professores e provocou uma crise política, e Keiko Fujimori, política conservadora e filha do ex-presidente Alberto Fujimori.
As diferenças entre os dois candidatos mais votados espelham a polarização no país, especialmente quando considerando que juntos, na primeira volta, somavam apenas 32% dos votos, entre um total de 18 concorrentes. Após um longo processo de contagem de votos, Castillo surgiu indicado como vencedor nas contagens oficiais, com 50,14% dos votos – uma diferença de apenas 44 mil votos face à sua adversária.
Durante a campanha, Castillo tinha insistido nas desigualdades presentes no país, que acabaram por se materializar numa divisão geográfica do voto, com a direita a ganhar nas zonas urbanas e abastadas, e a esquerda a dominar nos espaços rurais, zonas desfavorecidas e territórios de predominância indígena.
Fujimori, contudo, não aceitou a derrota e alegou a existência de fraude, pedindo a revisão e anulação de 200 mil votos em zonas onde não recebeu qualquer apoio, ainda que os observadores internacionais independentes garantam a inexistência de irregularidades e defendam a transparência do processo eleitoral. Apesar de alguns apelos a uma intervenção militar por apoiantes de Fujimori, o Ministério da Defesa emitiu um comunicado oficial que deixou explicito o facto de que respeitará o resultado da eleição, apelando a que os cidadãos façam o mesmo.
Ainda que a contestação do resultado eleitoral desperte receios sobre a estabilidade social e política no país, o que parece mais preocupar os stakeholders económicos é a incerteza em redor da natureza política que assumirá o mandato de Castillo. O vencedor da eleição apresentou-se como um marxista-leninista, defendendo a nacionalização do setor mineiro e dos media, mostrando intenções de enfraquecer a independência do Banco Central, pretendendo gastar em educação e saúde mais do que o estado arrecada em impostos na sua totalidade e ainda realizar um plebiscito que permitisse uma grande mudança constitucional que dotaria o seu cargo de amplos poderes. Ainda que este radicalismo tenha despertado apreensão em parte dos peruanos, mobilizando o voto pro-Fujimori e motivando um alerta do político e prémio Nobel da literatura Mario Vargas Llosa para que o Peru não seguisse o mesmo caminho que a Venezuela, na reta final da campanha Castillo mostrou alguns sinais de moderação.
O candidato da esquerda atenuou a retórica, transformando a vontade de nacionalizar setores da economia em apenas aumentar impostos nos mesmos, reiterando o seu respeito pela democracia, a constituição e a estabilidade económica, e ainda nomeando como seu principal conselheiro económico um economista do Banco Mundial que declarou o seu compromisso com a redução do défice e a autonomia do Banco Central. Estes sinais de moderação poderão assim indiciar o que poderá ser uma presidência de esquerda moderada e reformista, rompendo com o radicalismo de campanha assim como Lula da Silva fez ao ganhar as eleições brasileiras em 2002, apaziguando os temores dos investidores internacionais e abrindo caminho para o que foi uma presidência com resultados favoráveis para o setor empresarial, tendo o mesmo acontecido com a vitória de Ollanta Humala no Peru em 2011. Estas indicações são particularmente úteis ao país considerando o grande risco político presente na eleição, tendo a moeda do país, o Sol, desvalorizado em 8% desde a primeira volta. Adicionalmente, a própria conjuntura política do país parece vir a forçar uma moderação de Castillo, visto que o seu partido apenas elegeu 37 deputados, longe dos 66 necessários para constituir uma maioria, sendo que mais de metade dos eleitos pertencem a partidos de direita, indicando que o desafio da governabilidade exigirá a construção de consensos.
Desde os anos 90 que o Peru, com a presidência e agenda económica neoliberal do controverso presidente Alberto Fujimori, se tornou num “pilar de centrismo e disciplina fiscal na América Latina”, proporcionando a transformação do país num país de rendimento médio, mas deixando marcada uma grande diferença entre ricos e pobres. Estas desigualdades foram aprofundadas pela pandemia provocada pelo Covid-19, que aumentou a pobreza em quase 10% e fez com que o país apresentasse a maior taxa de mortalidade do mundo pela doença, e por uma grande quebra na atividade económica que, segundo o Banco Mundial, provocou uma queda do PIB de 11,14% em 2020, criando assim um contexto de grave crise económica que se juntou a um cenário de instabilidade e desconfiança política generalizada face ao Estado. Neste contexto, Castillo prometeu grandes mudanças, questionou o modelo económico do país e canalizou, com sucesso, as frustrações dos peruanos que se sentem deixados para trás.
Alguns analistas consideram que uma governação da esquerda moderada poderá mitigar o surgimento de tendências mais radicais, tal como a verificada com a guerrilha do Sendero Luminoso que aterrorizou o país nos anos 80 e 90, com base nalgumas das regiões mais pobres do país. O auxílio do governo a estas regiões torna-se ainda mais relevante quando considerando que é nelas que se concentra o cultivo de folha de coca do país que, apesar de em alguns casos a produção e consumo serem protegidos no âmbito da tradição cultural, o seu uso ilegal ajudou a criar uma indústria clandestina em grande crescimento desde 2014, com 20% da sua área global plantada localizada no Peru em 2017.
Deste modo, a presidência de Castillo enfrenta desafios em múltiplas frentes. No âmbito da estabilização, terá de pôr fim a um período de turbulência política e crise institucional que produziu quatro presidentes e oito ministros das finanças em apenas cinco anos, ultrapassando democraticamente uma rejeição da oposição que visa deslegitimá-lo e apaziguando ao mesmo tempo temores de uma presidência radical. Na economia irá encabeçar uma difícil recuperação económica que pretende complementar uma economia de mercado com um apoio social mais assertivo. No domínio da justiça, o sucesso da sua agenda de luta contra a corrupção será posto à prova com o decorrer de dois julgamentos fundamentais: o de Keiko Fujimori, líder da oposição que enfrenta acusações de lavagem de dinheiro, e de Vladimir Cerrón, o fundador e secretário-geral do próprio partido de Castillo, que enfrenta acusações de corrupção. E por fim, no âmbito identitário, o novo presidente terá não só de responder às demandas dos povos indígenas, que se queixam de serem vistos como cidadãos de segunda categoria, como também fortalecer o tecido social peruano num contexto de polarização extrema.
Em suma, a chegada atribulada de Castillo ao poder, que deverá tomar posse a 28 de Julho, terá de resolver problemas tanto estruturais como recentes numa conjuntura política e económica de grandes adversidades.
Texto: Nuno Vilão e Patrícia Santos
Edição: Filipe Domingues
Fotografia: RFI. Fonte: https://www.rfi.fr/br/am%C3%A9ricas/20210611-socialista-pedro-castillo-reivindica-vit%C3%B3ria-em-elei%C3%A7%C3%A3o-presidencial-no-peru
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